Crónica de Jorge C Ferreira | Saudades da outra rua

Saudades da outra rua
por Jorge C Ferreira

 

Reencontrar o momento numa noite de luar à sombra de uma palmeira. Ter saudades de estar na minha esplanada a olhar o mar. O azul do nosso Mar Nostrum. As minhas queridas amigas. A ilha que anda. O monte calado e uma igreja fechada. Os meus amigos que ainda bebem. A noite a crescer no passeio marítimo. Tenho tantas saudades de vocês, PORRA!

Falamos e dizem-me com ar triste da sua tristeza de não me verem sentado na mesa do costume. Da pouca gente. Dos cinquenta infectados da terra. Dos poucos barcos fundeados. Dizem-me para não ir. Contrariam a minha vontade. Os aeroportos, os aeroportos. As máscaras, as máscaras. A minha idade, a minha idade. Gostava de ir, PORRA!

A esplanada, sempre a esplanada na memória. O jardim de cima o poço e os peixes. As árvores, as plantas e as flores.  Os quadros do meu amigo Fernando. As suas motas sempre a brilharem. O seu amor por Vila Nova de Milfontes. Tanta vontade de te abraçar, PORRA!

A outra língua. Os outros Jornais. Os outros canais de informação. Ser mais um e ser igual num País diferente. Sermos nós e sermos gostados e conhecidos. Saber e ensaiar a ternura em qualquer espaço. Saber nadar. Ter a praia a uma rua de distância. Uma passadeira a chamar-me e não a usar. Agora até a praia e esse jogo me fazem falta, PORRA!

A minha outra rua onde, há mais de vinte anos, passo dois ou mais meses por ano. O meu espartano apartamento. Um primeiro andar com elevador e uma varanda enorme. Uma varanda de ver o mar. Uma varanda de navegar. Os vizinhos do costume. O meu senhorio e os seus gatos, o filho que já é um amigo. Os vasos verdes brilhantes com árvores pequenas e bem tratadas. Escrever isto dói, PORRA!

Apanhar o autocarro e ir de tapas. A confusão por uma noite. Aprender uma maneira diferente de viver. As mesas redondas, as barricas, os bancos de madeira. O barulho. O falar alto. As garrafas a despejarem o álcool do alto para uns copos grandes. Uma festa que é diária e não sei como está. Esqueci-me de perguntar. Regressar de táxi. Estas noites são bonitas, PORRA!

Estou no meu apartamento de novo. Vou à varanda. Olho para o mar, para a ilha. Descanso a mente. Volto depois para a mesa. Escrevo qualquer coisa no tablet, ou no telemóvel, ou no bloco. Ainda escrevo coisas à mão. Por vezes sinto falta. Vou de novo ver o mar. O que eu gosto deste caminhar, PORRA!

A livraria do costume. As novidades. Os livros que, entretanto, saíram. Os livros premiados. Os escritores consagrados. Tento passar tudo a pente fino. Compro ou tomo nota. Gosto de ler na língua original. Quando sei e posso. Lá posso. Vou lendo a “Babelia” ao sábado para ir estando a par. Não sabe ao mesmo. Eu sei que posso pedir pela Net, mas não é a mesma coisa, PORRA!

Quando vos abraçarei de novo, meus amigos? Quando daremos aquele abraço que merece a pena? Quando voltarei a ir jantar e almoçar com a Toña e o Salva? Tanto vazio por preencher, PORRA!

Saudades para todos!

«Tu estás danadinho para ires laurear. Tens é de te cuidar.»

Fala da Isaurinda.

«Sabes que me tento cuidar. Não faço nada de especial.»

Respondo.

«Cá para mim já te andas a descuidar.»

De novo Isaurinda e vai, um ar zangado na mão fechada.

Jorge C Ferreira Setembro/2020(265)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Saudades da outra rua”

  1. Cristina Ferreira

    Querido Jorge, uma crónica onde reflete o sentir de tantos nós. São memórias bonitas e apesar da diferente realidade que vivemos, não podes deixar de acreditar que vais voltar à tua varanda e a tua esplanada e amigos esperam por ti. Até lá vive o que tens contigo. Com todo o cuidado, claro.
    Abraço hoje e sempre
    Cristina

    1. Jorge C Ferreira

      Cristina, eu também espero ainda lá voltar. Sabes que me cuido. Abraço

  2. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Parar, meditar, viver das mais recentes memórias transportando-as para o presente.
    Também vivemos muito do passado!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      António, meu amigo, obrigado. No passado estão os nossos alicerces. Abraço

  3. Isabel Maria Pinto Soares Torres

    Um belo texto sobre a estranheza do quotidiano, das relações afectivas. É mesmo: porra! A necessidade do toque, da relação presencial vai crescendo e doendo cada vez mais. Até quando?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Isabel. A falta de tudo, de todos os afectos. O cansaço. Abraço

  4. Eulália Pereira Coutinho

    Texto excelente. Acompanhei cada passo. Senti o cheiro do mar. Ouvi risos na esplanada entre cafés fumegantes..Os passos lentos e descontraídos na marginal. O abraço. O beijo. Memórias perdidas. Memórias distantes. Saudade imensa do tempo em que caminhava.
    Cuide-se bem, meu amigo. Um dia voltará a viajar.
    Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Eulália, minha amiga, obrigado. Que bom ter conseguido que sentisse todas essas sensações. Abraço.

  5. Idalina Pereira

    Uma crónica de Saudade.
    Agora temos saudades de pequenas coisas ( às quais pouco ligávamos), dos afetos, de outros lugares. De tudo.
    Também estou farta / cansada disto, porra. Vamos esperar mais um pouco.
    Um abraço, amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina, minha amiga. Estamos a ficar cansados e fartos. Que remédio senão esperar. Abraço

  6. Regina Conde

    A outra rua que tanto te falta. A alma faminta de afectos. Os pormenores de cada espaço. A varanda onde irás alimentar textos magníficos. Irás descer o elevador e abraçar os que te aguardam. Espera um pouco mais. Vai acontecer. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. São imensas as saudades. Saudades das pessoas e da vida. Abraço

  7. ivone Teles

    E aqui temos mais um belo texto teu. E ao lê-lo, lembro como tens tanto mimo e és ” agarrado” aos teus afectos. Vivemos momentos raros para nós, mas temos Esperança que, em breve, voltarás a ter as pessoas mágicas nos teus lugares mágicos, também. Aproveita, o melhor que puderes, os dias que passarás nesse sempre desejado lugar. Aproveito para te informar que o meu comentário da semana passada não seguiu porque não preenchi os meus detalhes pretendidos. Como tinha clicado no ícone do face, devo ter pensado que como era ____ou_____estaria tudo bem. De qualquer modo vou tentar fazer coppy e colocar na tua página. Dá um beijo à Isaurinda e aqui estaremos sempre contigo. Beijinhos meu amigo/irmão, da Ivone

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Sim, sou dos afectos. De mimar e ser mimado. Só assim a vida corre. Abraço Grande

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